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sábado, outubro 25, 2003

XXXIV. Dogmas que se abatem 

Observei há dias, uns jovens estudantes do secundário em repasto vespertino, numa modesta pastelaria. Sentaram-se comodamente a meu lado, proporcionando-me inusitada companhia. Trajavam umas calças largas, coloridas e rasgadas aqui e acolá. Usavam cortes de cabelo que estilhaçaria qualquer vidro lá de casa, algumas argolas nas orelhas, uns «piercings» espalhados pelo rosto e uns «xailezitos» roçados a cobrir os ombros. Ainda pensei que fossem uma excepção por ali. Mas não. Mais uns minutos e a mesa compõe-se com mais uns amigos ornamentados com vestes coerentes ao gosto do grupo. O meu espanto surgiu quando me apercebi dos temas da conversa. Perfeitamente de acordo com aqueles que tinha com os meus colegas no tempo de liceu. Exceptuando, talvez, aquela história da foto ao «fio dental» da professora obtida com um «modernaço» telemóvel colado ao pé. Aqueles eram normais estudantes do secundário. Aí, tive a «certezinha» que estava a ficar velho.

Quando a palavra «certezinha» sonda a minha cogitação, relembro o que ouvi dizer ao falecido Mourão-Ferreira: “arranjam-se umas «certezinhas» para contornar a dúvida”.
Uma daquelas «certezinhas» tida como absoluta, era a que ligava o facto de a cada ser humano estarem associados, fatalmente, outros dois. A mãe e o pai. Há algum tempo que se sabe não ser necessário a «inevitável» relação sexual - tão profícuo tema – para consubstanciar a descendência. Tal não pressupunha a exclusão do fundamental papel reservado aos supra citados multiplicadores de vida. A relação entre eles é que se podia realizar de forma diferente. Até aqui, tudo bem. A «certezinha» mantinha-se como verdade sólida e imutável. A humanidade não tinha outra forma de se fazer multiplicar. Isto era assim até há bem pouco tempo.
Hoje, a «indústria» genética. Repito. Hoje, a ciência permite que um dos mais velhos dogmas associados à espécie humana possa ser atirado às malvas.
Este é um tema que já suscitou e vai continuar a suscitar os mais diversos comentários, teses, teorias sobre o futuro reservado ao Homem. Não vou enveredar pelo caminho da discussão sobre a clonagem. Falar sobre a proibição da clonagem de seres humanos é o mesmo que cultivar em terra estéril. Tal a inviabilidade da medida para evitar o inevitável. No futuro as sociedades terão que conviver com os semelhantes criados por esta via.
Sabendo dos preconceitos conhecidos para com o que é diferente, não é difícil antever os conflitos que essa convivência irá criar.

Estreitando o universo das hipotéticas consequências a gerar por essa futura convivência, não consigo deixar de pensar na imensidão de perguntas que se irão juntar às existentes, nas cabeças dessa futura geração.
Conhecidos que são os reflexos de uma boa, má ou inexistente relação com os progenitores no futuro de cada um, não custará imaginar a diversidade emocional a desenvolver-se com os descendentes via artificial.

Este tema surgiu-me quando lia mais considerandos sobre o caso que tem abalado o país (não coloco o nome para não ter visitas indesejadas, bastam-me aquelas geradas com os «desb_loqueadores ca_bo saté_lite»). É curioso verificar que na base deste episódio da vida do país, estão infâncias complicadas. Tanto de vítimas como de verdugos. Digo isto servindo-me de teses de quem está mais habilitado para discutir o tema. Estes defendem "a correlação entre infâncias problemáticas e virtuais danos futuros infligidos a quem possa sentir o mesmo que os praticantes de semelhantes actos sentiram no passado". Ufa! Obviamente, isto não explica tudo. Mas, parece-me um factor importante a ter em conta, quando se reflecte sobre o caso que abala o país.

Quiçá, influenciados por este contexto sombrio, ouço muito boa gente de horizontes limitados, afirmar que este é um tempo de degradação generalizada e irreversível. Ouvem-se frases tipo: “o mundo está perdido”; “veja-se a podridão a alastrar por todo o mundo”; “ninguém acredita no bem”...
Cá por mim, tendo presente a visível mudança de valores e algumas perturbações nebulosas no planeta que habitamos, devo dizer que aprecio sobremaneira o privilégio de viver nos tempos que correm.
Há quem diga que o Homem do Séc. XXI, tirando o avanço tecnológico, é na sua essência igual ao do Séc. XIX. Alguns defendem a conhecida teoria da repetição da História, como forma de anular o propalado avanço da humanidade.
Ao nível do pensamento, o Homem poderá efectivamente não ter evoluído por aí além. Porventura, até terá recuado.
Mas, há pelo menos três dados que fazem desta página da história da humanidade, um episódio ainda não relatado – quem sabe nos tempos da Atlântida. O nível tecnológico, o número de habitantes do planeta, e a reprodução humana via clonagem.
A partir daqui, nada será como dantes.



Nota: Um cumprimento especial a quem perdeu parte do seu precioso tempo com as divagações aqui do barman de serviço. Destaco a honrosa menção nos links de aviz; o epíteto de «clássico» pelo mar nada insosso; de «educador» pelo médico explicador (tomara que os meus velhos pensassem o mesmo); e consequente copy e paste do mesmo post no fumaças.

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